23.7.07

Sexta-feira Lúcia - William Galdino

Sexta-feira Lúcia
Estou aqui te observando enquanto você caminha pele orla, com as mãos nos bolsos desenhando percursos sobre as linhas da calçada. Vejo-te brincando com as chaves pra aliviar as mãos tensas, sorrindo sem graça pro vizinho que te cumprimenta. Então você pára de repente, indecisa entre água de coco e refrigerante, e escolhe o mais barato. Guarda o troco e senta-se com os olhos baixos diante do orelhão, pensando se deve ou não ligar pra ele. Mas como sempre você pensa demais, acha que está sendo inconveniente, insistente, e prefere desistir, sem saber o quanto ele espera pelo seu telefonema.

Seus dedos bailam no ar, e você sente uma tristeza fria como estas noites de agosto. Dói tanto, mas não há pranto, você já não sabe chorar, as lágrimas endureceram e ficaram cravadas no fundo d’alma, e como pesam. Ergue o corpo e segue na caminhada. Não sabe se volta pra casa ou continua andando, não sabe. Estanca o movimento, sente o mundo girando e tem de vontade de gritar, mas não grita, silencia e volta ao lar. Eu te sigo. Ao chegar os cães lhe fazem festa e você os enxota aos pontapés, sente raiva de si, sente demasiadamente. Curva-se e os acaricia numa tentativa de desculpas, e eles as aceitam. Entra no quarto, tira as roupas e as arremessa sobre a cama, deita-se nua no chão frio, sem saber o que fazer desta noite e assim fica, imóvel por um longo tempo.

Na sua memória passeiam as lembranças de todos aqueles que pareciam te olhar de uma maneira diferente, e realmente alguns deles te olhavam. Mas você sempre se achando indesejável, sem-sal, embora no fundo desconfiasse que as outras não tinham um terço do seu valor. Você tinha um mundo no peito, mas parecia não haver ninguém para ouvi-la. De uma daquelas tardes distantes, ressurge a imagem do cara que esbarrou contigo na saída do cinema. Seus olhares se encontraram e naquele segundo vocês pareciam descortinados um para o outro, mas as palavras não saíram, e ele se perdeu no meio da multidão. Desde então aquele rosto nunca mais se apagou da sua lembrança. E vieram outros verões, alguns encontros, bem menos que desencontros, e a terrível sensação do tempo que passou sem ser vivido.

Na buzina de um automóvel, você desperta das lembranças e volta ao presente. Observa a luz do poste que invade o quarto e pousa sutil no bico do seu seio, decide levantar-se e diante do espelho solta um riso discreto. É hora de voltar à vida. Escolhe o seu vestido mais bonito e sai mais uma vez à procura de uma noite diferente.
William Galdino, 2005.

19.7.07

Um só (comotodos)

E foi assim...
Parti de um simples traço vertical
Em direção ao infinito
No sentido contrário do que se é
Subvertendo a ordem da imposta
Rotina onde meu cansado corpo se encosta

Do simples saber que não se é
Aquilo que minha mãe julgava eu ser
O óbvio que o mundo esperava ver
É que tive a grande iluminação
Apenas mais um milho
Apenas mais um grão

E o seu doutor advogado
Policial civil, militar ou o viciado
Exercem cegos suas funções de merda
Esperando que a glória os alcance
Tolos! Ainda não sabem que a morte
É um instantâneo - um rápido lance.

Sorte minha que descobri
Que parte de mim ficou aqui
Nestas linhas simples e sem sentido
Para aqueles que só aprendem com os ouvidos
E nunca sentirão o que senti
Eu sou parte de você e o mundo é de mim.

E envolvi com os braços
Aquela fria coluna de mámore
Como se fosse ela minha irmã.

(Fábio dos Santos)

18.7.07

O encontro das águas - William Galdino

Uma lua quase plena
Arranha-se na quina do edifício.
Enquanto um brinda
O outro se atira.
Há um cão em cada esquina
E talvez um deles cheire
E coma aquele beijo de despedida
Que desabou no chão.

O marujo holandês sorri por suas escolhas.
Renúncia do leito em troca do mar.

Bocas falam vitórias
Criando suas próprias medalhas.

O enamorado dança.
Como a única coisa a ser feita.
Ter os olhos e os pés dados.
Salva-vidas pros dias de naufrágio.
Clariceano, anseia uma morte bonita.
Daquelas de se fechar os olhos e partir levando o melhor.

Sobre as calçadas da Lapa
Desinteressadas
As cobras-voadoras
Seguram na boca a luz da noite

Banhando as barbas sujas de alguém que já sonhou.

William Galdino, julho de 2007

14.7.07

Renascimentos

A poesia do Leonardo Schuery já esteve presente aqui, por duas ocasiões, com os excelentes "Mundo real" e "Reflexões do interior".
Poesia sempre densa e reflexiva, retrata estados sutis, a percepção do próprio ser não apenas enquanto cognição sentimental, mas como um conjunto onde o corpo desempenha papel essencial e participante.
A poesia que posto hoje, "Renascimentos", é carregada porém muito bela e traz um sentimento pujante de vigor e superação especiais.

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O encontro dos corpos cansados
Tocando a morte material
Na face destruída pela dor
Da consternação de saber que não há mais vida

Pelo ar o odor fúnebre das lamentações
Acúmulo de restos, resquícios dos destratos
Na alma conspurcada pelas desilusões
Não há mais nada

E refaz-se o corpo
Milagre inesperado da regeneração natural
Sem deturpações e torpores inconsistentes
É possível o amor

Dorme fundo em auspiciosos sonhos
Mesmo cercado de perigo
Faz amanhã um abrigo
De luz própria e nada mais.


(Leonardo Schuery, em 26 de junho de 2006)

9.7.07

Homenagem aos pais ausentes

Por ocasião da minha formatura, fui responsável pela homenagem a ser feita aos pais falecidos, inclusive o meu próprio.
Resolvi fazer um soneto, que acabou se tornando o primeiro poema que declamei em público. Este poema não está em nenhum dos livretos que lancei.


As luzes do ambiente se esvaecem,
Moléculas de ar brecam o som;
Denso se torna este festivo tom
E nossos olhos, lassos, umedecem.

Este é um momento particular:
A recordação do abraço ausente,
A perda repentina de um parente –
Segundos de caráter secular

O olhar triste sucumbe à gravidade;
O açoite inexorável da saudade
É elevado à última dimensão.

Mas é hora dos passos adiante,
Essa sim é a homenagem gigante
Aos que conosco não mais estão.


(Isaac Frederico, em 2002)

6.7.07

nO silênciO um pOnto. um pequenO furO nO espaçO. nO perfeitO cantO. um pOnto no silênciO. O fim de tudO. a bOca calada. a pOrta fechaDa. um risO de fachaDa. uma cOr sOlúvel. um chá intRagável. uma dOr impaGável. um rOsa incOntrOlável. um varal suspensO. um sOnho no asfaltO. um assaltO. cOraçãO declaradO.

5.7.07

Balcão

Qual segredo esconde o vale
Que daqui de fora vejo
Por onde anseio passear a língua
Encardida de desejo?

Tamanho encanto te deste a sorte
Ao sem querer nascer com tal sorriso
Onde querem tocar meus lábios
Ansiosos submissos

Gaguejo ao interpelar-te
Quando chega em mim a fila
Transformando um coração
Que é de pedra em argila

Queria eu ver-te completa nua
Ver rosar teu rosto augusto
Pois definir a crueldade - para mim
É ver-te só o vestido busto

("São quatro reais, senhor."
Diz-me sem emoção
A mulher da padaria
Por detrás do seu balcão)

E então, pago-lha com o cobre!!!
E desço a rua sorrindo... feliz só de ver.

(Fábio dos Santos - para o livro LASCIVO)