31.5.08

Recortes do tempo - parte I

Oriundo da geração de poetas que povoou o 9º andar da UERJ a partir de 2002, caracterizada pela diversidade de abordagem e profusão de idéias, André Bentes traz em seu último lançamento - "Recortes do tempo" - o poema homônimo de abertura, dividido em 5 partes (sendo as 3 primeiras sonetos) que irei postar aqui nas páginas do Presença, nos próximos dias.
O poema traz intensa reflexão, ora sombria ora mundana, sobre os recôncavos da existência

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I

Confesso que desperto um certo nojo
Ao ver que a hipocrisia aqui impera
No lodo em que se vive, onde se espera
Que venha a se viver tudo de novo.

E põem-se a negar que suas trevas
São parte do que são, e luminoso
É o instante que se faz, como num jogo
Como no encontro vão de duas pernas

Ainda estás aqui meu caro amigo
Revela-te me então ao pé do ouvido
E isso provará que há o mistério

Mas enquanto retornar a luz que brilha
Limita-te a inspirar, depois expira
E isso mostrará o que é o eterno.


(André Bentes, do livreto "Recortes do tempo")

19.5.08

Ribeirão,pedras, águas e rodeios com ursos gigantes.

Acrílica sobre tela 2005.

Era um rio liso, mais que isso, parecia estreito e raso com suas águas de molhar canelas, mas era largo e profundo como um mar de ondas calmas. Com os dedos dos pés escrevia versos sobre as águas daquele córrego. Que tempo era aquele? Que tempo? E com a ajuda das pedras e das mãos de meus primos construíamos represas. Queríamos parar as águas, queríamos criar lagos, por algum tempo conseguíamos. Por pouco tempo. Depois as águas nos venciam. Então soltávamos nossos barcos de folhas e os deixávamos desabar pelas cachoeiras. Olhávamos nossas mãos , dedos de velhos enrugados. Ríamos.
Pelas pontes de troncos voltávamos, cada qual trazendo sua história mirabolante. As contávamos ao chegar, os mais velhos riam e também nos contavam as suas; o suicida que se enforcou e bateu com a língua no chão, o cigano do rabo de cavalo, (não dos cabelos compridos e presos abaixo da nuca, mas de cauda eqüina), e a que mais me fascinava, do urso gigante. Até então eu nunca conseguira vê-lo, sempre íamos embora antes dele aparecer.
Na festa de São João eu perguntava;
- E o urso?
- Ainda vai demorar, fica pra outro dia.
Me confomava pois o sono já era grande, e resmungava ao lembrar das três horas de caminhada que teria que enfrentar até chegarmos em casa, no caminho o urso gigante me acompanhava , pensava na sua cor, se era marrom, branco, preto...
Pensava: Como tinha ido parar um urso gigante no interior de Minas Gerais? Me diziam que tinha fugido do circo, desconfiava, pois nunca tinha visto um circo por aquelas bandas. Todo barulho vindo do mato me assustava, seria ele? Aí meus olhos iam se fechando, o sono chegava e de repente o tio Ilisteu me sacudia – Acorda menino, tá dormindo andando? Despertava, nesse momento já tinha esquecido do urso, provavelmente ele também já estaria dormindo. Aí era contar os passos pra continuar acordado, assoviar pra chamar as corujas (que nunca nos atendiam) e ouvir histórias de lobisomem, até avistar a porteira torta e abrir um sorriso pro sono tão desejado, então me deitava no chão de terra batida da cozinha, e ficava a olhar os resquícios de brasa no fogão à lenha, e via na sombra que as chamas criavam um imenso urso, derrubando todos aqueles que o tentavam montar.

sem data.



Entre o vivido e o sonhado, o visto e o ouvido. Passeando por pontes de madeira sobre o rio dos dias, entre as margens de ontem e hoje. Recriando para não esquecer, mantendo vivo.

15.5.08

Atol

Sonho-te e nas brumas recendes

......................
O perfume assustador de quem

......................não está.

De quem ferve a doce índole do que fica

No fogo frio de um verde glauco;


..................................................Seco a testa de uma febre rica
..................................................Evaporando num amor incauto.


Transluzo nos olhos a minguante lua

...................Em gotas que se perdem nas bochechas,

...............................................Traduzo o silêncio dos que se esvaem


................................No gelo triste de um amor sem filhos


...................................Que justifica as lágrimas que caem
.........................................Na natureza dos andarilhos.


.............................................Fora dos trilhos, refrões vagos,
..........................................................Nesgas de versos sem legendas
.............................................Num amor fora de época,
.....................................................Encarnado. Dessemelhante.

....Vibrante mas... dissociado.



(Rio de Janeiro, aos 13 de maio de 2008)

12.5.08

Destilado

Above deep waters, pintura de Hans Hoffman



Então caminho trilhos
por fora.

Invado as janelas que meus olhos alcançam.
Visito livros, cinemas, multidões, horizontes de praia,
num qualquer coisa de esquecer-se.

Os dedos batucam impaciência.
Em bancos de espera,
pelo toque esperado que não toca.

Laço bondes.
Devoro ondas.
Crivo olhos a dentadas nas nuvens (que parecem dragões de lata).
Assisto almoços de família.
Desdenho pingando numa pontada
misto de ira e inveja.

Choro escondido
ao ver dois enamorados incrustando corações a canivete
na pele dura de uma amendoeira.

Rompo o azul , abarco o amarelo, comungo em vermelho.
Num relâmpago,
num vôo
entre os píncaros da euforia e os pastos fundos do abismo,
trezentos e sessenta e cinco anos ao dia.

Repiso o chão
onde os pés eram pares duplos .

Você pode estar na rua paralela
passar dois minutos depois ou uma curva acima.

Desencontro dado numa fração de segundo.

O presente- ausente trinca devaneios na minha ânsia.
Enfileiro um milhão de motivos
Trago rancores enumerados,
mas basta uma lembrança de sorriso e tudo se dissipa.

Em excesso de ti me afundo.
Adentro mares
estrangulo sereias
ofendo netuno
estou surdo.

E volto à terra arremessado contra as pedras.
Retorno ao dia da semana
ao passo calmo
a quase aceitação.
Até ser renovada a procura...
Até um novo mergulho atrás de um aceno
que já não diferencio se sonho ou realidade.

Embriaguez tumultuada,

O quase transe do inóspito.


E quem pode calar o irremediável chamado do coração?


Abril de 2008.

10.5.08

O touro e o toureiro

mais um soneto do "poesia pra toda obra", este um tanto sádico.
abraços a todos !

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O grito uníssono, a arena repleta
E o toureiro adentra, em tom triunfal –
O implacável verdugo do animal
Insano: o touro, que a festa completa.

Chifres imensos, anel no nariz:
Por um instante o toureiro tem medo;
"Matando o touro, confirma-se o enredo;
Morrendo eu... um final infeliz"

O touro arranca em fúria hiperbólica
E, como uma ironia diabólica,
Rasga ao meio o amedrontado toureiro.

E a platéia, ensandecida, se apraz:
No fim, a tragédia nos satisfaz
Quando o próximo sucumbe primeiro.


(Rio de Janeiro, aos 01 de junho de 2005)

6.5.08

Limite

Virar para um lado
virar para o outro.

O atrito das costelas
o atrito das idéias.

Virar uma página
virar outra.
Um lado do disco
depois do outro.
Desejo de consolo,
desejo de calmaria.

De presente
suor e ranger de dentes.

Vira um copo
vira outro.

Buscar em todas as filosofias
Vasculhar no íntimo.
Pendurar fantasmas
Debater com o sórdido.

Esquiva-se
pra não se ver vestido do que recrimina.

O medo desce na penumbra
lento e decidido.

E ainda pode se levantar em fuga
ainda pode correr
(e quando não mais?).

E chorar e praguejar...

Ter os olhos vazados pela claridade.

A poeira baixando.

De repente
a realidade curvilínea que ofusca.

Encara o corpo nu no espelho.
Vira o rosto.
Procura por qualquer máscara que lhe cubra os olhos.

Dúvida
receio

Vontade de se encontrar
até se perder
e novamente...

E o desejo de afastar pro lado
o riso mesquinho que a cara pintada não esconde.

Ou a expressão débil que a fotografia lhe rouba.

E vê a pele cair
e tenta retê-la.


Os pés no trampolim
Momento sem desvio.


É a dor da mudança.
O salto no escuro.
Ponto culminante
onde não há recuo.

Abril de 2008.

Brisas

Pintura de Jack B. Yeats


Andei relendo alguns poemas que o Rafael me enviou há algum tempo e me deparei com este, brisas, um poema carregado de sensações e vivências comuns a todos nós. Um poema de passagens e ausências mas também com espaço para “o centeio bom” em meio ao “trigo estragado”. Brisa em dias de pés no chão.

“não somos mais que brisas! Tênues, estúpidas e frívolas brisas...”



Vão-se as coisas
palavras e suas pessoas
nelas encarnadas
nada resta
e vão apagar a lousa
a palavra amor escrita às pressas
deverá morrer no verde escuro
e os teus olhos amor, que absurdo!
pularão para fora do tempo
onde estiveram tão atentos
agora sós
tão cabisbaixos dentro em mim
Vão-se as coisas
os carros alegóricos - fantasmas d´uma vida
passagens solitárias nas ruas daquele filme
você deletará os e-mails,
apagará as mensagens,
e as fotografias digitais
que pesavam tua caixa de entrada
mas existe o centeio bom e o trigo estragado
para acelerar a perda, aquela perda estranha
que não se sente e só nos resta o ausente
a falta que parece estar doente
bebericando alguma sopa rala
falseando os dentes,
e os leões de nossa culpa
sob o castanho sol africano
ai, meu bem... não somos mais que brisas!
Tênues, estúpidas e frívolas brisas...


R. Elfe, sem data.

4.5.08

A brisa cisplatina

Segue um poema de 2005, que foi publicado no livreto "Poesia pra toda obra", lançado em outubro de 2005 em co-autoria com Vinícius Perenha.
Exemplares do livro encontram-se à disposição pelo Presença, a quem interessar possa.

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Sibilou triste, a brisa cisplatina,
Varrendo as planícies continentais;
Os demais fenômenos naturais
Estranharam-lhe o choro de menina.

"Que tem a brisa?", perguntou a aurora.
A chuva respondeu "tem querer trágico
Por furacões, um amor hemorrágico
Por sopros que carregam tudo embora",

Que varram tudo e lhe levem também
Pelos raros e rubros céus do além,
Suspiros de mocinha apaixonada.

E advêm suas lágrimas do tornado
E de seu status de recém-casado
Alhures, com outra qualquer soprada.


(Macaé, aos 01 de junho de 2005)

1.5.08

Príncipe Míchkin

Aproveitando o ensejo do post #250 neste Presença e a iminência do lançamento do meu décimo livreto - "Iuri Gagarin e outros poréns" - posto aqui um poema inédito, que estará no livreto novo.
O poema é uma alusão ao protagonista do livro "O Idiota", de F. Dostoievski e a sua generosidade e ingenuidade, vistas aos olhos de todos como a mais pura idiotice, imbecilidade.
Abraços e presença !

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Um coração enorme e generoso,
Uma bondade ingênua,
Digna de nota
mas eis que aos olhos todos
não passas de um idiota,
benevolente e gentil,
motivo de riso –
Uma anedota!
Sem jeito e indeciso
que a todos queres bem…

......................Ah príncipe Míchkin…
........................Fosses tu a regra
..........e quantos não responderiam por seus atos,
.................gananciosos seriam escassos.
.....................À tua renúncia um ode
..................pois seríamos irmãos de fato,
...................riríamos de inteiro corpo
...........e pagaríamos nossas contas e extratos
...................com calorosos e genuínos



...............................Abraços.


(Rio de Janeiro, aos 24 de janeiro de 2008)