28.7.08

Sentado à beira mágoa os montes vejo

.....Mais um poema do Grego - Rafael Huguenin - o poeta e filósofo camisa 10 dos sonetos ditos "independentes", e aqui não há pretensão alguma de cunhar termos nem introduzir divisões, até porque a poesia não pode ser certeiramente dividida entre alternativa e mainstream, como a música, por exemplo. Ou até pode, mas são outros os parâmetros.
.....Este belo poema traz uma carga forte de angústia e tem um acabamento belíssimo.
Abraços e presença !

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Sentado à beira mágoa os montes vejo,
órgãos afiados que projetam cumes
e em cujos escarpados, feros gumes
encontro a mesma corda que ora arpejo.

Facas, espadas, dardos que dardejo
contra o céu que se fecha em mil negrumes
não bastam pra calar os pesadumes
que o coração me cortam, e assim doidejo.

As armas contra a dor de nada ajudam,
a cada golpe rudes se desnudam
diversos braços novos que não venço.

E só me restam lágrimas salgadas:
com sentimento tanto assim choradas
me lavam ao menos o meu rosto tenso.


(Rafael Huguenin)

24.7.08

Viver e devir

(pintura de tinta acrílica em papel comum, 2004)


A sua alopração é previsível, meu caro.
O seu desespero era esperado.
A trajetória parabólica que seus braços fazem
Enquanto você se debate,
Submerso nas suas mais úmidas dúvidas,
Do estado mais vulnerável do seu ser –
Alguém já pensou nela.
O que você se pergunta
Está no script que te entregaram, seu nome no campo "nome".
O volume de água que você chora
Já foi calculado antes.

E aí você vive sua primeira transa
(A redenção absurda do sexo),
Perde pela primeira vez um parente próximo,
Chora a primeira vez que te rejeitam,
Vê o sol se pôr a dois,
Interpreta as coisas, fica se perguntando
A validade do que foi e do por vir.

Dorme com um barulho desses, irmão.

(Do livreto "Viver e Devir, 2004. Rio de Janeiro, aos 15 de junho de 2003)

22.7.08

Uma pequena alegria

Fotomontagem,2005


Fecha o chuveiro.
Escorre pelo ralo o resultado de mais um dia de luta. No vestiário o último dos funcionários calça seu tênis e guarda a toalha molhada na mochila. Desce as escadas e ao bater o cartão percebe que já passa das onze. Um boa noite cabisbaixo é dado a empacotadora que lhe lembra uma antiga paixão da adolescência. Promete a si mesmo que amanhã a convidará para o cinema. Há duas semanas ele vem dizendo isso.
Pela economia de um vale-transporte começa sua caminhada, uma hora até encontrar o sono, no caminho decide contar quantos carros vermelhos avistará antes de chegar em casa. Conta até o terceiro, daí pra frente mergulha numa suspensão quase budista da qual só é expulso ao ser xingado por um idiota que passava na garupa de uma moto.
Ao atravessar a rua diante de um prédio modesto, repara na luz do abajur de um dos apartamentos e sua mente fantasiosa imagina que ali naquele momento há uma adolescente ninfomaníaca transando loucamente com algum primo mais velho. Olha pra trás e lamenta-se por nunca ter tido uma prima ninfomaníaca. E isso o faz lembrar-se das sextas feiras em que se escondia embaixo das cobertas diante da tv, esperando ansiosamente o início de mais uma pornochanchada, que o faria esquecer a sua frustração por não ser um Don Juan.
Ri sutilmente enquanto seus pés saltam pelo meio fio.No muro chapiscado avista uma antiga pichação de sua autoria, dos tempos em que botava a lata na cintura e saia pedalando pelas ruas à procura de diversão. Entristecido por reviver o passado decide se concentrar no caminho que ainda falta até chegar ao descanso que o corpo lhe pede. Ao aproximar-se da última esquina que o separa de sua rua, um carro estacionado na calçada dificulta a sua passagem, olha nos olhos da menina sentada no banco do carona, intimidada ela desvia o olhar, ele continua a caminhar, até que ouve o motor ser ligado e detém seus passos. Imediatamente vem à sua cabeça a lembrança de um conto, no qual um homem aparentemente normal saía à noite em seu automóvel, à procura de uma vítima pra atropelar.
Na sua contemplação àquele belo rosto, não observou quem estava ao volante, fica pensando que talvez a menina linda tivesse ao seu lado algum namorado ciumento que agora aceleraria e passaria por cima do seu corpo. Mas não foi o que aconteceu.
Lentamente o carro passou ao seu lado, adiante ele viu a menina colocar seu rosto pra fora da janela e com a ponta dos dedos junto aos lábios mandar um beijo em sua direção, ele sorriu enquanto o carro sumia na penumbra.
Naquela noite ele sonhou com os anjos.

Agosto de 2004.

20.7.08

Tédio




Uma tarefa maçante estaca
O tempo; faz de segundos milênios
E sela com o relógio convênios
Onde o ponteiro das horas empaca.

Ruminando em tal compasso isotônico
Cada instante tem duração de ano,
Superar o tédio draconiano
Exige então esforço faraônico.

A conclusão é sequer aturar
As chatices que virão te abordar:
Deixai-as pros estóicos per natura.

Que cada minuto de saco cheio
Dobra seu peso pra minuto-e-meio
Desperdiçado: lamento algum cura.


(Rio de Janeiro, aos 27 de junho de 2005)

18.7.08

Marujo

Abriu a garatuja,
o marujo.
Enigmático,
encheu o cachimbo de chumbo,
respiro plúmbeo,

próximo

ao tanque de diesel de boreste.
Entrópico, o navio
pelos ares
em mil pedaços desiguais
picotando os mares
de carne, sangue e metais


(Macaé, aos 06 de julho de 2008)

14.7.08

Degelo

Fotomontagem, 2005.

Que te abraço em devaneio e oscilação. Te elegi a musa dessas noites de cera quente sobre as pálpebras. Quanto durará? Tantas já se foram e não deixaram falta. Um dia, uma semana, mas enquanto permaneceram foram únicas. Agora é você, nos olhos, na memória. E solto pequenos cortejos e sonho e lanço ao longe, pra onde se faça mais difícil o alcance. Admirando sem tocar. E não há nisso inocência ou medo. E nado no mar do provável, do que poderia ser. E com tuas mãos me acaricia os cabelos. E brinco, e tento novamente como quem procura salvação mas tão logo a consiga, abdica.
É um querer indisposto, um sonhar desperto. E te levo comigo em noites de suor e te presenteio com flores de desculpas. No império devastado é a única estátua que ainda resiste.
E fico com os olhos postos em ti na indecisão de abraçá-la ou quebrá-la definitivamente.


Setembro de 2006.

11.7.08

Cliquem na imagem para vê-la ampliada.
Essa é uma das imagens que roubei do trabalho que tenho desenvolvido em Itaboraí.


"Vidro de perfume"

De atropelo é vida
nova cuspindo
campo.

É galo engolindo prédio,
velho
olhar rasteiro e espanto.

É prédio lançando lua,
gente lançando carma,
lançando.

Vidatropelada
avenidas derrapando em bocas,
e beijos engarrafados.

Amor
engolindo vidro
pia
de rachar silêncio.

De atropelo é vida
e é a morte
secando a rua.

7.7.08

Pósmodernice


Viva o nosso tempo!
Solidão , aids , alienação.
Não restou nada. Sem deus, sem crenças políticas, sem utopias... Porra, antes ainda havia esperança. Agora só esse gosto amargo do tédio e do cansaço. Uma desvontade terrível.
Olha àquela mesa, tem alguma coisa dentro daquelas cabecinhas? Tão modernos, tão rebeldes... No café da manhã cereal e chocolate quente. Depois se fantasiam e vêm pra cá posar de artistas.
Imediatismo, é só o agora meu irmão. Salve-se quem puder .
Sexo pra salvar a noite e dar uma aliviada na manhã seguinte, mas dura pouco, depois é o vazio e a sensação tão comum de estar só. E a tarde vai caindo e procura no armário algo pra beber, a dor aumenta, aumenta e aumenta e depois explode num ‘SOCORRO!!!’
Corre pro telefone liga pra ex-namorada e diz “por favor não me abandona, eu só tenho você”
E seguimos cada qual nadando no poço de seu próprio umbigo.
A menina dos sonhos não veio. Não há espaço pra românticos neste mundo meu querido. Essa princesa que você espera foi comida pelos jacarés quando tentava fugir do castelo.
A vida é o que a gente faz dela.
Sai da torre e oferece a cara pro mundo bater.


André Luis Pontes, diário sem floreios 1997.

4.7.08

Quase topo

Na esteira das últimas leituras que tenho feito da poesia do Heyk, venho revisitando alguns escritos que lancei em 2006, com o foco, de então, de mostrar as possibilidades oriundas da sublimação da palavra, mostrar como a semântica pode gerar confusões que, na verdade, nem existem. Trilhos wittgensteinianos de então, dentro do parco compreendimento que tive da obra do grande filósofo.
Abraços a todos e presença !

- - -

O pouco que consigo tocar, Deus, como é frustrante estar sempre tocando o quase-topo,
aguardando a aprovação diletante do inexistente, como um baixo grave que entrará nos
ouvidos e nunca mais sairá, permeando sua tentativa na existência de fundo musical
eterno;
E tão geograficamente próximo da escuridão mais torcionária que pode haver, a câmara
estanque do absolutamente intolerável, a piração do incompreensível, do
semanticamente absurdo, como uma gota de eletricidade que num primeiro momento
não pode ser e num segundo momento, de assalto, coça o coldre para alvejar,
massacrante como uma incessante coceira de pena na sola do pé, o campo inteiro do
seu compreendimento, a coisa mais raiz que você pode carregar, comparável em âmago
somente ao toque da boca no seio da mãe.
E a dor mais aflitiva e pungente, o não ter como, o tergiversar, o derrubar dias como peças de
dominó, a torção do caule, a delação, o bug do milênio, ninguém atinge, ninguém sabe o
que é.
A um passo da plasticidade da mercadoria, a um passo do sol no quintal, uma grande noite de
12 anos, por estar tão perto e tão longe dos dois extremos, a noite do “a um passo de”,
a busca da chave do cofre que não existe – meu deus, pode algo ser tão diabolicamente
vil a ponto de não apresentar solução cognoscível?!
A má novidade – o seu limite do horrorizante está deveras mal-acostumado, o número irracional,
a incongruência mais severa, o negativo da segurança do dia-a-dia – estão muito aquém
do que sua pequena cabeça pode admitir.
É fogo no milharal, o necessário incêndio neurótico para conseguir voltar a caminhar, manejar a
cadeira de rodas com segurança, esta sim sua nova aquisição – não que precise mas o
desejo foi mais forte, o desejo da derrota rápida e indolor mediante o vislumbre da
chance zero da vitória, o desejo de ter o nome gravado pra sempre na insignificância
mais extrema, não incomodar nem ao nível da contra-indicação, ser uma bula de um
remédio inrastreável, fabricado por, interações medicamentosas, posologia,
medicamento fitoterápico tradicional, uso oral.
Um elogio – um novo sol. As pessoas são felizes porque são limitadas. Você, não. É tudo um
estado de espírito. O homem é fruto dos seus atos.
Sai, cara, sai dessa, exorciza, esquece todos os aniversários, não compra mais o modelo, sorve
a seiva da poesia sem te agredir, sem te mutilar com a concentração de sentimento por
centímetro quadrado. Toca a tela de cristal líquido, abrindo mais uma opção que nunca
será a derradeira, explode o labirinto com o brilho dos teus olhos, chora a lágrima mais
linda que a existência já testemunhou com a doçura dos teus olhos, sobe e desce, saiba
subir e descer, sorria por saber subir, salve o sorrir por saber subir, separe o “salve o
sorrir por saber subir” do truque métrico.
Tudo passou. É triste, mas tudo passou. Não vou me matar tentando permanecer na sua vida. O
triste mais intenso, o triste de te ver mudar, de não te reconhecer mais – esse triste se
avizinhou, o triste de perder a esperança, de perder a vontade de continuar seguindo, de
continuar te admirando.


(Do livreto "Reações ao Grande Absurdo - A Palavra", parte integrante de "Acontecente", lançado em 2006)

1.7.08

São Luís baby blue


O sorriso do gato ria alinhado as três marias
Ela os acompanhava com seus lábios de menina
e suas covas engraçadas.
Mas seus olhos traziam um fundo de tristeza.

Por buscas incessantes
Canções de despedida
e lágrimas contidas.

Naquele momento
A rasga mortalha varou o céu num grito.
Coruja branca talhando a noite.

Fenda de asas sonoras.

Acima do mercúrio
e do silêncio.

Maranhão, 2006 .
(Lua de fases, interferência digital, 2008.)