5.4.13

Fernando Rodrigues e seu "Manifesto"


Recentemente numa ida ao Centro do Rio encontrei com o Fernando Rodrigues divulgando seus livretos no bom e velho esquema faça-você-mesmo dos poetas de calçada. Fernando tem vinte e poucos anos é morador da Ilha do Governador e recentemente ingressou no curso de Filosofia do IFCS.
O poema a seguir foi retirado do livreto “Manifesto” e faz parte do livro de mesmo nome previsto pra ser lançado em breve.
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A cidade e seus contrastes na visão do poeta.
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“Manifesto”

Digestão escarrada dos séculos passados;
a realidade carioca, reflexo onírico dos
desejos feridos propagados em ecos de alcance
inestimável.

A maquinaria sinfônica dos sentidos desregrados,
enganados, descarnados, transcende ares
vezes tropical, vezes mórbidos, vezes os dois.

A cidade, esse monstro de energia que mastiga,
canta, olha, julga, deseja, rouba, mata, urra,
massacra, não para,
no movimento dos carros, olhos dos viciados,
gracejo dos privilegiados,
necessidade dos marginalizados;

é a poesia síntese não escrita de eras cíclicas
de membros mutáveis e estrutura estática,
correntes de toda humanidade não definida,
canalizada pra alguns pontos, como rios nos mares,

o Rio de Janeiro é um desses mares,
realidade confusa, duvidosa, com diferentes
perspectivas que se cruzam, se aproximam,
entrelaçam ao inconsciente, no irreal.

Os mendigos se revirando,
carros engarrafados buzinando,
as multidões ejaculadas dos prédios no
horário de pico,

os pirados berrando se borrando e comendo
em marmitas de alumínio doadas,
o exército de salvadores recolhendo almas
e as vertendo em cédulas sempre mais altas,

o voto comprado,
a cerveja gelada,
a cachaça barata,
as putas moribundas,

os reacionários esclarecidos
como vacas lobotomizadas,
os revolucionários com o grito estéril,
os que se acham mais sóbrios que os dois e
falam que mudanças são ferrugens intelectuais,

os traficantes transformados em ídolos
nas favelas
e pelos circos de playboys que desejam um dia
ser com os jogadores de futebol,

a Av. Presidente Vargas fervilhando e
a Uruguaiana em polvorosa,
fome,
engavetamento nos túneis,

a Zona Norte extensa, esquecida, movimentada,
parada, suburbana,
Baía de Guanabara sufocada com marés de lixo
a Zona Sul pros gringos, com suas pompas,
arrastões, edifícios caros amontoados, praias cheias
torrando banhistas aos sol,
uma Zona Oeste ignorada,
mas com uma Barra e Recreio novaiorquisados,

ritmo incessante dia e noite
do monstro de energia gerador de êxtase, euforia,
massificação, ilusão: transfiguração da
realidade irreal individual ou não.

Essa poesia não escrita, mas vivida, não acadêmica,
toma forma no campo da arte da mesma maneira
que no dia a dia:
digerindo e vomitando tudo de uma só vez;
um parto convulsivo e doloroso dessa existência
nervosa e desordenada do Rio.

Assim essa poesia pode agora ser parida
sobre o papel e encontrar seu espaço,
mesmo que seja no esquecimento
e no seu aborto enquanto literatura.

Fernando Rodrigues, Março de 2013.